Hoje, aniversário de nosso grande poeta Castro Alves, é comemorado no Brasil o Dia Nacional da Poesia. Em homenagem ao dia, e para proveito de leitores e poetas que nos leem, publicamos aqui o famoso texto de Horácio, A Arte Poética.
Quintus Horatius Flaccus (Horácio)
Arte Poética
Tradução de notas de Mauri Furlan
1-5 Quisesse um pintor (1) juntar a uma cabeça humana um pescoço equino, e com variadas plumagens revestir aos membros tomados de todas as partes, de forma que torpemente terminasse em horrível peixe o que em cima fora formosa mulher, levados a contemplar o quadro, amigos, conteríeis o riso?
6-9 Acreditai, Pisões (2), muito semelhante a este quadro é o livro em que, como sonhos de doente, fantasias vãs são concebidas, quando nem pé nem cabeça são de um mesmo modelo representados.
9-13 “Aos pintores e aos poetas sempre foi propício o poder de tudo ousar” (3). Sabemos, e esta permissão pedimos e damos reciprocamente, mas não para que aos mansos se aconcheguem os ferozes; não para que se unam as serpentes às aves; aos tigres, os cordeiros.
14-19 A pomposos começos e que prometem grandiosas coisas, costura-se freqüentemente um que outro remendo purpúreo, brilhante à distância, como quando se descreve o bosque sagrado e o altar de Diana, e o caminho da água corrente por amenos campos, ou o rio Reno, ou o arco-íris (4); mas não era então seu lugar.
19-23 Provavelmente sabes representar um cipreste. Que importa isso, se quem pagou para ser pintado escapa das naus em destroços desesperançado? (5) Começou-se a produzir uma ânfora; por que saiu um pote da roda em movimento? Seja, enfim, qualquer obra, ao menos simples e una.
24-30 A maior parte dos vates, ó pai e jovens dignos do pai, somos iludidos pela aparência do correto: tento ser breve, obscuro me torno; ao que busca leveza faltam vigor e energia; o que promete o sublime torna-se empolado; rasteja por terra o excessivamente prudente e temeroso de tempestade; aquele que deseja variar de modo maravilhoso o que é uno pinta golfinhos em florestas, javalis sobre ondas.
31-37 Ao erro conduz a fuga a uma falta, se carece de arte (6). O mais ínfimo artesão nas proximidades da escola de Emílio (7) moldará unhas e reproduzirá em bronze cabelos macios. O conjunto da obra, porém, será infeliz, porque não saberá criar o todo. Eu, se me preocupasse em compor alguma coisa, não quereria ser aquele homem mais do que viver com nariz torto, olhos negros e cabelo negro de se admirar.
38-45 Tomai um assunto, vós que escreveis, proporcional às vossas forças. Avaliai longamente o que os ombros ferrenhamente recusam e o que podem. A quem escolheu conforme suas forças, nem a eloqüência o abandonará, nem a ordem clara. Consistirá a força e a beleza da ordem, ou estou enganado, em que o autor do poema anunciado diga agora as coisas que agora devem ser ditas, muitas outras adie e omita no momento, ame isso, despreze aquilo.
46-58 Delicado e cauto também ao juntar palavras, te expressarás distintamente se, por combinação engenhosa, uma palavra conhecida produzir uma nova. Se casualmente for necessário mostrar o oculto da coisas com revelações novas, e acontecer de se criar coisas nunca ouvidas pelos Cétegos cintudos (8), permissão será dada, se usada com reserva, e as palavras inventadas ainda novas terão crédito se, derivadas (9) com discrição, caírem de fonte grega. Concederá, pois, o romano a Cecílio e Plauto (10) o que foi proibido a Virgílio e Vário (11) ? Eu, por que sou invejado, se poucas coisas posso obter, quando a linguagem de Catão e Ênio (12) enriqueceu a língua pátria e exibiu novos nomes de coisas? (13)
58-62 Sempre foi e será permitido criar um nome assinalado com marca do presente. Como as florestas são transformadas por suas folhas com o passar dos anos, caindo as mais velhas, assim se perde a geração antiga das palavras e, como os jovens, florescem as nascidas há pouco e vingam.
63-69 Estamos fadados à morte, nós e nossas coisas. Seja Netuno (14), que, recolhido à terra, protege os exércitos contra os aquilões, obra de rei (15); seja um paul (16), que, estéril por muito tempo mas adequado aos remos, alimenta as cidades próximas e sente o pesado arado; seja o rio (17), que, ensinado um caminho melhor, mudou seu curso iníquo às colheitas. As obras mortais perecerão, e nem mesmo a honra e o encanto das linguagens se mantêm vivazes.
70-72 Renascerão muitas que já sucumbiram e sucumbirão as que agora são palavras apreciadas, se o uso consentir, porque este tem nas mãos o poder de decisão, o direito e a norma do falar.
73-85 Ações de reis e generais e terríveis guerras, mostrou Homero em que medida podem ser escritos. Em versos irregularmente ligados, primeiro foi incluída a queixa, depois também a manifestação de desejo possuído. Que inventor, porém, terá criado os curtos poemas elegíacos, discutem os eruditos, e a questão está até agora sob julgamento. A fúria muniu Arquíloquo (18) de seu próprio iambo: as comédias e as tragédias (19)tomaram este pé, adequado para diálogos e para superar estrépitos populares e nascido para empresas de ação. A Musa permitiu à lira decantar divos e filhos de deuses, o pugilista vitorioso e o primeiro cavalo no certame, inquietações de jovens e vinhos licenciosos (20) .
86-92 Por que eu, se não posso e não sei observar gêneros estabelecidos e estilos de obras, sou saudado como poeta? Por que querer antes ignorar, perversamente modesto, a aprender? Um fato cômico não quer ser exposto em versos trágicos. Igualmente indigna-se a Ceia de Tiestes (21) de ser narrada em poemas popularescos, mais dignos da comédia. Tenha cada coisa escolhida seu lugar conveniente.
93-98 Algumas vezes, entretanto, também a comédia levanta a voz, e um Cremes (22) irado, com cara enfurecida, exaspera-se. Também o trágico muitas vezes lamenta-se em linguagem prosaica, qual Télefo ou Peleu (23), quando, um pobre e outro exilado, rejeita estilos empolados e palavras extremamente longas, se, com o lamento, quer tocar o coração do espectador.
99-107 Não é suficiente serem belos os poemas; sejam doces e conduzam aonde quiserem a alma do auditório. Como riem com os que riem, assim também entre os que choram estão os semblantes humanos; se queres que eu chore, hás de sofrer tu próprio primeiro; então teus infortúnios me tocarão, ó Télefo ou Peleu. Se proferires mal tuas falas, ou dormirei ou rirei. Palavras tristes convém a um rosto abatido; as carregadas de ameaças, a um irado; as lascivas, a um brincalhão; as graves de dizer, a um severo.
108-111 A natureza, de fato, nos forma primeiro interiormente, para qualquer situação da fortuna: nos agrada ou nos impele à ira, ou nos joga por terra em profunda tristeza e nos angustia; depois, exalta paixões por sua intérprete, a língua.
112- 118 Se as palavras do falante estiverem em desarmonia com a fortuna, cavaleiros e plebeus romanos darão gargalhadas. Importará muito se fala um divo ou um herói, um ancião amadurecido ou um rapaz fogoso em plena juventude, e uma matrona poderosa ou uma escrava nutriz, um mercador errante ou um lavrador de um sítio verdejante, um habitante da Cólquida ou um da Assíria, alguém criado em Tebas ou em Argos (24).
119-124 Ou segue a tradição ou cria coisas convenientes entre si, escritor. Se porventura reencenas o honrado Aquiles (25), seja ele diligente, colérico, impiedoso, impetuoso, negue que as leis lhe são destinadas, arrogue tudo às armas. Seja Medéia (26) feroz e inexorável, chorosa Ino (27), pérfido Íxion (28), Io (29) errante, triste Orestes (30).
125-130 Se pões em cena algo inexperimentado e ousas criar personagem nova, seja ela preservada até o fim da maneira como tiver procedido desde o começo, e esteja em harmonia consigo. É difícil contar, com propriedade, coisas popularizadas. Tu, porém, pões em atos um canto ilíaco (31) mais convenientemente do que se mostrasses pela primeira vez coisas desconhecidas e inéditas.
131-135 Matéria pública será de direito privado, se não delirares em torno de um ponto desprezível e banal, nem fiel tradutor tratares de traduzir palavra por palavra, nem imitador te lançares numa situação embaraçosa, de onde a timidez ou a estrutura da obra não permita sair.
136-152 Nem começarás assim como outrora um escritor do ciclo épico (32): “A fortuna de Príamo cantarei (33) e a nobre guerra”. O que contará esse prometedor digno de tamanho boqueirão? Parirão os montes, nascerá um ridículo rato (34). Mas, com quanto mais propriedade este que nada projeta ineptamente: “Canta-me, ó Musa, o varão que, após os tempos da conquista de Tróia, viu de muitos homens os costumes e as cidades” (35). Este não cogita produzir fumaça a partir do fulgor, mas da fumaça luz, para manifestar, em seguida, especiosas maravilhas, Antífates (36) e Cila, e Caríbdis (37), além do ciclope (38). Nem a volta de Diomedes (39) é urdida a partir da morte de Meleagro, nem a guerra dos troianos a partir do ovo gêmeo (40). Ele se apressa sempre para o acontecimento e impele o auditório para o meio das ações, como se conhecidas, e omite as que, examinadas, não espera poder brilharem. E do mesmo modo que ilude, assim confunde coisas falsas com verdadeiras, de forma que nem o meio discorde do início, nem do meio o fim.
153-157 Tu, ouve o que eu e comigo o povo deseja, se queres aplaudentes que esperem fechar as cortinas e permaneçam sentados até que um cantor diga: “Aplaudi!” (41). Hás de notar os costumes de cada idade e o que convém ser dado às naturezas e aos anos mutáveis.
158-160 Um menino, que já sabe reproduzir palavras e com passo firme marca o chão, anseia brincar com seus pares, irrita-se, mas logo esquece, sem considerar, e muda a toda hora.
161-165 Um jovem imberbe, finalmente livre do pedagogo, alegra-se com cavalos, cães e a relva do Campo (42) ensolarado; afeiçoa-se, como cera, ao vício, áspero com censores, moroso provedor de coisas úteis, pródigo com dinheiro, sublime, apaixonado, e pronto a renunciar a coisas amadas.
166-168 Com gostos mudados, procura a idade e a alma viril obter poder e amizades, escraviza-se a honrarias, acautela-se de começar o que logo custe mudar.
169-174 Muitos incômodos afligem um ancião, seja porque adquire e, mísero, abstém-se e, mais, teme gozar o adquirido, seja porque executa tímida e friamente todas as coisas. Contemporizador, persistente na esperança, inerte, e ávido de futuro, difícil, lastimoso, louvador dos tempos idos de sua infância, castigador e censor dos menores.
175-178 Os anos que avançam trazem consigo muitas vantagens, os que recuam muitas levam. Não sejam entregues a um jovem papéis de anciãos, e a um menino, os de homens. Sempre se permanecerá naquilo que pertence e é próprio a cada idade.
179-184 Ou representa-se algo no palco ou narra-se o já acontecido. As coisas apreendidas pelo ouvido excitam mais debilmente os ânimos do que as que são submetidas a olhos fidedignos e que o espectador testemunha por si mesmo. Não farás aparecer em cena aquelas que convém serem executadas nos bastidores, e muitas suprimirás aos olhos, as quais narre a facúndia de alguém presente.
185-188 Não trucide Medéia seus filhos diante do povo, ou, em público, o abominável Atreu (43) cozinhe entranhas de vítimas humanas, ou transforme-se Procne (44) em ave, Cadmo (45) em serpente. Incrédulo, odeio tudo o que assim me apresentas.
189-192 Nem mais nem menos do que cinco atos possua a história que quer ser solicitada e reapresentada. Nem intervenha um deus, se não acontecer de o enredo ser digno de intervenção, nem uma quarta personagem se preocupe em falar.
193-201 O coro defenda uma função individual, um papel de ator, e não cante nos entreatos coisa alguma que não sirva e não esteja perfeitamente ligada ao tema. Seja ele favorável aos bons, e aconselhe amigavelmente, e contenha os irados e ame os que temem errar; louve os pratos da mesa sóbria, a justiça salutar e as leis e a paz nas portas abertas; guarde segredos, e invoque os deuses e ore para que a fortuna retorne aos míseros, abandone os soberbos.
202-207 A flauta, não como agora, fundida com latão e comparável à tuba, porém delicada e simples, com poucos orifícios, era adequada para dar o tom aos coros e assisti-los, e com seu som encher inteiramente os assentos, ainda não demasiadamente numerosos, onde se reunia, na verdade, uma multidão enumerável, porque pequena, e sensata, religiosa e respeitosa.
208-213 Depois que o vencedor começou a estender seus campos, e um muro mais longo a abraçar as cidades, e o Gênio a ser apaziguado com vinho diurno (46), impunemente, nos dias de festa, uma licença maior penetrou nos ritmos e nas formas. Que discernimento, pois, poderia ter, liberto dos trabalhos, o indouto camponês misturado com o citadino, o torpe com o nobre?
214-219 Assim, à antiga arte o flautista acrescentou movimento e entusiasmo, e, errante, arrastou a veste pelos tablados. Assim, também à severa lira acresceram-se tons (47), e uma facúndia impetuosa produziu a expressão de um pensamento insólito, e sua sentença, sagaz para coisas úteis e adivinhadora do futuro, não diferiu da de Delfo (48).
220-224 Aquele que, com um poema trágico, concorreu pelo prêmio de um bode (49) barato, desnudou em seguida (50) os sátiros (51) agrestes e, rudemente, com seriedade salvaguardada, experimentou o jocoso, pois que o espectador, tendo realizado os sacrifícios, e bêbado e licencioso, devia ser retido com atrativos e agradável novidade.
225-230 Na verdade, conveniente será apresentar de tal modo os sátiros gracejadores, de tal modo os sarcásticos, transformar de tal modo as coisas sérias em brincadeira, que, seja qual for o deus, seja qual for o herói mostrado, ainda há pouco visto em ouro e púrpura real, não se mude para tabernas (52) sombrias por causa de sua linguagem baixa, ou, enquanto evita a terra, procure apanhar as nuvens e os ares.
231-233 Indigno da tragédia é dizer versos frívolos; qual matrona levada a dançar em dias de festa, se encontrará um pouco envergonhada entre os sátiros libertinos.
234-239 Eu, ó Pisões, se escritor de dramas satíricos, não amarei somente expressões sem arte e palavras precisas, nem me esforçarei para diferir do estilo trágico a tal ponto que não interesse se fala Davo (53) e a audaciosa Pítias, enriquecida com dinheiro do extorquido Simão (54), ou Sileno (55), guarda e servo do deus, seu discípulo.
240-243 Partindo do conhecido, intentarei um poema esmerado, de forma que qualquer um, ao esperar o mesmo de si, sue muito e trabalhe em vão, se tentado o mesmo: tão poderoso é o encadeamento e a combinação, tanto se acrescenta de beleza a coisas tomadas do meio.
244-250 Retirados das florestas, acautelem-se os Faunos (56), - me arvorando em juiz - para que nunca ajam como se nascidos em praças públicas e quase advogados, ou como jovens com versos excessivamente doces, ou gritem palavras sujas e ignominiosas. Ainda que o comprador de noz e de grão-de-bico assado (57) aprove, ofendem-se, de fato, os cavaleiros e os nascidos livres e os ricos, e não suportam com ânimos resignados, nem concedem coroa de louros.
251-262 Uma sílaba longa justaposta a uma breve chama-se iambo, pé rápido. Isto levou a acrescentar aos iambos também o nome de trímetro, visto que assinalava seis pulsações (58), da primeira à última semelhantes entre si. Há não muito tempo, a fim de que chegasse aos ouvidos um pouco mais lento e mais forte, o iambo admitiu aos direitos paternos, conveniente e resignado, os estáveis espondeus, sem que cedesse, como um bom companheiro, a segunda ou a quarta posição. Ele aparece raro nos célebres trímetros de Ácio (59), e acusa os versos de Ênio, colocados em cena com grande importância, de torpe crime, ou de trabalho rápido, carecendo excessivamente de cuidado, ou de arte ignorada.
263-269 Não vê qualquer juiz os poemas sem cadência, e é indigna a concessão dada aos poetas romanos. Por este motivo, pois, vagueio e escrevo desregradamente? Acaso penso que todos haverão de ver meus erros protegido e precavido na esperança de perdão? Fugi, enfim, a uma falta; não mereci louvor. Vós, versai os modelos gregos com uma mão noturna, versai-os com outra diurna.
270-274 Vossos antepassados, contudo, louvaram tanto os ritmos quanto os gracejos plautinos, e ambos com excessiva resignação, para não dizer com estultice, admirados, se de certa forma eu e vós sabemos separar um dito grosseiro de um gracioso, e dominamos com os dedos e o ouvido um som acordado às regras.
275-280 Diz-se ter Téspis (60) inventado o ignoto gênero da trágica Camena (61) e transportado em carros de duas rodas os poemas que caras untadas com sarros de vinho cantavam e representavam. Depois disto, Ésquilo, inventor da máscara e da veste de adorno, também armou o tablado sobre pequenos caibros e ensinou a falar alto e a equilibrar-se no coturno (62).
281-284 A esses sucedeu a comédia antiga, não sem muito louvor; mas a liberdade terminou em vício e em violência digna de lei absoluta: a lei foi aceita e o coro torpemente calou-se, subtraído ao direito de prejudicar.
285-288 Nada foi não-experimentado, deixaram claro nossos poetas; nem pouca glória mereceram os que ousaram abandonar as pegadas gregas e celebrar fatos domésticos, seja os que representaram pretextas, ou, togatas (63).
289-294 Nem por seu vigor nem por suas afamadas armas seria o Lácio mais potente do que por sua língua, se não ofendesse a cada um dos poetas o trabalho de lima e tardança. Vós, ó sangue Pompílio (64), refutai a poesia que não porta muitos dias e muitas modificações e não se corrigiu umas trocentas vezes até à perfeição.
295-308 Porque Demócrito (65) julga o engenho mais afortunado que a mísera arte e exclui do Helicão (66) os poetas sãos, boa parte não trata de cortar as unhas nem a barba, procura lugares isolados, evita banhos; adquirirá, assim, mérito e nome de poeta, se ao barbeiro Licino (67) nunca entregar a cabeça, insanável às três Antíciras (68). Oh, quão tolo sou, eu que me purgo da bílis (69) na época da primavera! Outro não faria melhores poemas. Na verdade, não vale a pena. Logo, que eu sirva como uma pedra de amolar, que, privada de cortar por si mesma, tem o poder de tornar agudo o ferro. Eu próprio, nada escrevendo, ensinarei o múnus e o dever, donde são manifestos os meios, o que fomente e forme um poeta, o que convenha, o que não, aonde conduza a virtude, aonde o erro.
309-318 Saber é princípio e fonte de escrever corretamente. Os escritos socráticos poderão te apresentar o assunto, e as palavras seguirão não involuntárias o assunto previsto (70). Aquele que aprendeu o que deve à pátria e o que, aos amigos, com que amor deva ser amado um pai, com que um irmão e um hóspede, qual seja o dever de um senador, qual o de um juiz, qual o papel de um general enviado à guerra, este sabe seguramente o que conferir a que pessoa com conveniência. Convidarei o douto imitador a atentar para o modelo da vida e dos costumes e a partir disto a compor falas vivas.
319-322 Por vezes, uma história brilhante em algumas partes e corretamente caracterizada, mas de nenhuma graça, sem expressão e arte, apraz muito mais e melhor retém o povo do que versos pobres de assunto e suas frivolidades canoras.
323-324 Aos gregos concedeu a Musa o engenho, aos gregos, ávidos de nada mais além de glória, o falar em linguagem harmoniosa.
325-332 Os garotos romanos, através de longos cálculos, aprendem a dividir um asse (71)em centenas de partes. - “Responda o filho de Albino: se de um quincunce subtrai-se uma onça, o que resta?... Poderias já ter respondido. - A terça parte de um asse. - Bravo! Poderás conservar teu patrimônio. E se acresce uma onça, o que perfaz? - Meio asse.” Uma vez que essa avareza e o cuidado do pecúlio tenha impregnado os ânimos, esperamos, porventura, poder serem produzidas poesias que devem ser revestidas com resina de cedro e conservadas em cofre de cipreste polido? (72)
333-340 Ou ser úteis ou deleitar querem os poetas, ou, simultaneamente, cantar alegrias e utilidades à vida. Seja breve tudo aquilo que prescreveres, para que os ânimos dóceis e fiéis rapidamente compreendam e guardem os ditos. Todo supérfluo emana de um coração cheio. As coisas criadas em causa do prazer estejam próximas à verdade. Não exija a história que se acredite em qualquer coisa que queira, nem extraia vivo do ventre de Lamia (73) o menino por ela almoçado.
341-346 As centúrias dos anciãos (74) censuram os poemas desprovidos de utilidade; os orgulhosos Ramnes (75) preterem os austeros: obteve todos os votos quem uniu o útil ao agradável, ao mesmo tempo, deleitando e instruindo o leitor. Este livro rende dinheiro aos Sósias (76), atravessa o mar e prolonga uma longa vida ao afamado escritor.
347-350 Há, entretanto, faltas, às quais consintamos perdoar; pois nem a corda produz o som que a mão e a mente quer, e ao que requer um grave, muito freqüentemente concede um agudo; nem o arco logrará sempre tudo o que vise.
351-360 Na verdade, quando muitas coisas brilham num poema, não serei eu que me chocarei com umas poucas máculas, as quais ou produziu a incúria ou pouco se acautelou a natureza humana. Que é isto, pois? Como o copista, se, por mais que tenha sido advertido, comete sempre a mesma falta, está privado de perdão; como o citaredo, que erra sempre na mesma corda, é escarnecido, assim, para mim, quem muito negligencia torna-se aquele Quérilo (77), a quem, se por duas ou três vezes bom, admiro com riso; e por outro lado me indigno quando o bom Homero dormita. Na verdade, é natural a uma obra longa suceder sono.
361-365 Como a pintura é a poesia: haverá uma que, se estás mais perto, mais te seduz, e outra, se estás mais afastado. Essa ama o obscuro; à luz quererá ser contemplada aquela, que não teme a sutileza arguta de um juiz; esta agradou uma só vez, aquela agradará trocentas vezes retomada.
366-373 Tu, ó mais velho dos rapazes, por mais que, pela palavra paterna, tenhas te moldado para o bom, sabes também por ti, guarda, pois, este dito memorável: é concedido convenientemente a certas coisas o médio e o tolerável. Um medíocre jurisconsulto e executor de causas difere do advogado Messala (78) no vigor, e nem sabe tanto quanto Aulo Cascélio (79), contudo, tem seu valor; porém, nem homens, nem deuses, nem colunas (80) concederam aos poetas serem medíocres.
374-378 Assim como, durante aprazível banquete, desagradam um concerto discorde, perfume grosseiro e papoula com mel sardo (81), porque poderia ser realizado sem isto, também um poema nascido e inventado para agradar aos espíritos, se se afastou um pouco do objetivo primeiro, vergou-se para o último.
379-384 Aquele que não sabe jogar mantém-se afastado das armas do campo de Marte, e o inepto para a bola ou o disco ou a argola não disputa, a fim de que as espessas rodas de espectadores, com razão, não estourem em risos. Ousa, porém, compor versos aquele que não o sabe. Por que não? É livre e nascido livre (82), sobretudo recenseado à ordem eqüestre na soma de seus bens (83), e isento de qualquer falta.
385-390 Tu nada dirás ou farás contra a vontade de Minerva (84): isto, para ti, é discernimento, esta, disposição de espírito. Se, contudo, algum dia tiveres escrito algo, que caia nos ouvidos do crítico Mécio (85), nos de teu pai, e nos nossos, e permaneça oculto até o nono ano em pergaminhos guardados; será permitido destruir o que não fores publicar. Palavra emitida não conhece retorno.
391-399 Orfeu (86), sacerdote e intérprete dos deuses, dissuadiu os homens selvagens de carnificinas e de uma subsistência repugnante (87). Dele diz-se, por isso, ser capaz de abrandar tigres e leões ferozes. Diz-se também de Anfíon (88), fundador da cidade de Tebas, ser capaz de mover pedras com o som da lira e, com um pedido carinhoso, conduzi-las aonde quisesse. Houve um dia essa sabedoria de discernir o público do privado, o sagrado do profano, de proibir o concubinato livre, de dar direitos aos maridos, de construir cidades, de gravar leis em tábuas (89).
400-407 Adveio assim honra e renome aos divinos vates e seus cantos. Depois desses, o insigne Homero e Tirteu (90) excitaram com versos os ânimos viris para as guerras de Marte. Através dos cantos foram ditas as sortes, e, da vida, mostrado o caminho (91), e, pelas formas piérias (92), tentada a graça dos reis, e inventada a representação teatral e o fim dos longos trabalhos. Não te seja, pois, motivo de vergonha a Musa (93) hábil na lira e Apolo (94) cantor.
408-411 Louvável seria um poema feito pela natureza ou pela arte, buscou-se saber. Eu, não vejo a que serve nem o esforço sem um rico talento, nem o engenho sem arte: assim uma coisa requer o auxílio da outra e conspira amigavelmente.
412-418 Aquele que se esforça por alcançar numa corrida a meta desejada, muitas coisas suportou e fez desde menino; suou e resfriou, absteve-se do amor e do vinho (95). O flautista que canta nos jogos píticos (96) antes aprendeu e temeu seu mestre. Hoje basta dizer: “Eu componho versos admiráveis; a sarna pegue o último (97); me é vergonhoso ficar para trás e, o que não aprendi, reconhecer ignorar completamente.”
419-425 Qual pregoeiro que reúne uma multidão junto às mercadorias a ser compradas, leva os aduladores a buscar vantagem o poeta rico em campos, rico na usura do dinheiro emprestado. Se de fato há quem possa servir convenientemente uma boa mesa, e afiançar um pobre sem crédito, e libertar um envolvido em funestos litígios, admirarei se o felizardo souber reconhecer entre um amigo falso e um verdadeiro.
426-433 Tu, se tiveres presenteado ou quiseres presentear algo a alguém, não queiras levá-lo cheio de alegria aos versos feitos por ti, pois exclamará: “lindo, bom, excelente!” Por causa deles empalidecerá, e uma lágrima correrá lentamente dos olhos amigos, pulará, baterá no chão com o pé. Como aqueles que, contratados, lastimam-se num funeral (98), dizem e fazem quase mais que os que na alma padecem, assim mais se manifesta o bajulador que o louvador sincero.
434-437 Os reis, diz-se, forçam a muitos copos e torturam com vinho a quem se esforçam para ver claramente seja digno de sua amizade. Se escreveres poesias, nunca te enganem desejos ocultos de raposa (99).
438-441 Se recitasses algo a Quintílio (100), ele diria: “Corrige isto, por favor, e isto”; se dissesses não poder melhorar, duas ou três vezes experimentado em vão, convidaria a destruir e a refazer na bigorna os versos mal torneados.
442-444 Se preferisses defender um erro a transformá-lo, não despenderia mais nenhuma palavra ou esforço inútil para que não amasses só a ti e às tuas coisas sem rival.
445-452 O homem bom e prudente censurará os versos insípidos, incriminará os sem arte, aos mal ornados cobrirá com um sinal negro, por um cálamo (101) transverso, aos ornamentos pretensiosos suprimirá, aos pouco claros obrigará a dar luz, acusará o ambiguamente ordenado, assinalará coisas que têm que ser mudadas, tornar-se-á um Aristarco (102) e não dirá “Eu, por que ofenderia um amigo a propósito de ninharias?” Essas ninharias o levarão a graves males, uma vez escarnecido e recebido desfavoravelmente.
453-460 Os que sabem temem tocar num poeta vesano (103) e fogem, como o fazem a sobre quem pesa o mal da lepra ou a doença real (104), ou o delírio fanático (105) e a iracunda Diana (106); garotos o perseguem e incautos o seguem. Elevado enquanto arrota seus versos e vagueia, como se atento aos melros, se cair esse passarinheiro em um poço ou uma fossa, embora grite à distância e longamente “socorro!, ei!, cidadãos!”, não haja quem cuide de levantá-lo.
461-467 Se alguém cuida de obter auxílio e arremessar uma corda, direi: “Como sabes se, deliberado, não se terá ali jogado e não queira ser salvo?”, e narrarei a morte do poeta siciliano: desejando ser tido como um deus imortal, atirou-se o frio Empédocles (107) no Etna ardente. Haja e seja concedido aos poetas o direito de perecer: quem salva o que não quer ser salvo, faz o mesmo que o que mata.
468-476 Não é a primeira vez que fez isto, nem, se for retirado, tornar-se-á homem a partir deste momento e deixará de lado o desejo de uma morte famosa. Nem é bastante evidente por que muitas vezes faz versos: acaso terá urinado nas cinzas do pai, ou, impuro, terá profanado um sinistro local sagrado (108). De qualquer forma está louco e, assim como um urso, que pode romper as grades protetoras da jaula, afugenta ao douto e ao indouto o acerbo recitador; e a quem, na verdade, tomou de assalto, prende-o e mata-o lendo; não desgrudará da pele senão farto de sangue, o parasita
Notas
As notas referentes à mitologia apresentam, geralmente, apenas uma das versões de cada mito, e são introduzidas pelas iniciais MR ou MG (Mitologia Romana, Mitologia Grega).
1 A comparação entre o poeta e o pintor é famosa e aparece muitas vezes na Poéticade Aristóteles.
2 Receptores da carta de Horácio. Originalmente a Ars Poetica foi intitulada Epistula ad Pisones (Epístola aos Pisões). Cf. capítulo 2.
3 A objeção levantada e respondida por Horácio é freqüentemente associada à frase de Luciano, in Pro Imaginibus, 18: “É um velho dito que os poetas e os pintores não têm que prestar contas”.
4 A crítica de Horácio às digressões e lugares-comuns é provavelmente feita sobre obras então conhecidas.
5 O cipreste, como ainda hoje, é tomado como símbolo de morte e luto. Os naufragados deixavam-se pintar em cena de naufrágio para colocar seu quadro nalgum templo ou para suscitar a compaixão pública. Conta-se de uma anedota grega que havia um pintor que só sabia fazer bem ciprestes e que propõe a um naufragado pintar a árvore junto à representação do naufrágio. Donde, um provérbio grego: “Não queres que eu coloque aí também um cipreste?”
6 O que Horácio parece estar dizendo é que evitar uma falta, porque seria reconhecida pela crítica, mas sem habilidade, sem técnica, sem arte, leva à repetição, à reprodução da mesma falta, ao vício.
7 Escola de gladiadores fundada por Emílio Lépido. Haveria no lado exterior do edifício, que dava para a rua, lojas de escultores em bronze.
8 Os Cétegos eram uma tradicional família romana, e conservavam o costume de vestir sob a toga um cinctus, antiga roupa de trabalho dos romanos, que foi substituída pela túnica. A palavra cinctutus é uma criação horaciana, e se adequa ao preceito exposto. A palavra portuguesa cinto vem da latina cinctus, daí a possibilidade de criação de um equivalente parcial como cintudo.
9 Há uma discussão relativa a que tipo de derivação se refere Horácio. Para alguns trata-se de palavras gregas latinizadas graças a uma ligeira mudança (p.ex.,amphora, de ), para outros, trata-se de palavras formadas de uma raiz latina por analogia com a palavra grega correspondente (p.ex., tauriformis = ).
10 Cecílio (morto em 168 a.C.) e Plauto (254-184 a.C.) são poetas cômicos, mencionados aqui sobretudo por sua liberdade de criação de vocábulos, em contraposição aos poetas da geração atual. Embora Cícero dissesse que Cecílio fora o mais insigne dos poetas cômicos, chamava-lhe malus auctor latinitatis.Por sua vez, a linguagem das comédias de Plauto sempre foi admirada entre os antigos romanos, mas na época de Augusto aquele “arcaismo” já não atraía os homens mais cultos.
11 Virgílio (70-19 a.C.) e Vário (séc.I a.C.) são poetas contemporâneos de Horácio. Vário apresentou Horácio a Mecenas.
12 Catão (234-149 a.C.), escritor, orador, historiador, agrônomo, general, grande defensor da nacionalidade romana. Ênio (239-169 a.C.), poeta, um dos fundadores da literatura latina.
13 O preceito de Horácio alude ao seu contexto histórico de divergências entre duas escolas gramaticais: uma, chefiada por Cícero e César, defendia a analogia na parte morfológica e na parte lexical da língua, não admitindo, portanto, neologismos; a outra, admitia a anomalia, concedendo que na língua se inovasse por meio da introdução de palavras novas.
14 MR: Netuno é o deus romano do mar.
15 Parece haver aqui uma referência à construção de um porto feito por Agripa, em 37 a.C., onde antes havia o lago Lucrino.
16 Supõe-se que Augusto retomou o projeto de César de dessecar o pântano Pontino.
17 Provável alusão aos trabalhos de Augusto para desobstruir e regularizar o leito do rio Tibre.
18 Arquíloco de Paros (sec. VII a.C.), poeta grego, a quem Horácio atribui a criação do iambo.
19 Em latim soccus e coturnus eram calçados usados, respectiva e propriamente, nas comédias e nas tragédias; são aqui tomados como metonímias.
20 Metáforas para diferentes gêneros líricos.
21 MG: Tiestes é irmão de Atreu, cuja esposa ele seduz. Em vingança, Atreu assassina os filhos de Tiestes e os serve num jantar. Por isso Tiestes amaldiçoa a descendência de Atreu, e a maldição recai sobre o filho de Atreu, Agamenon, e sobre o sobrinho, Orestes.
22 Cremes, personagem da Heautontimoroumenos de Terêncio (séc. IV a.C.), repreende de forma quase trágica o filho Clitiphon.
23 Télefo é personagem de uma tragédia de Ésquilo (séc. VI a.C.), de uma de Sófocles (séc. V a.C.) e de uma de Eurípedes (séc. V a.C.). MG: Télefo , durante a guerra de Tróia, é ferido por Aquiles; mais tarde aparece em Argos, depois de Agamenon, como um mendigo. Tornou-se o protótipo do infeliz, e servia de exemplo aos filósofos. Peleu, pai de Aquiles, mata seu meio-irmão e é exilado.
24 Horácio opõe, dois a dois, os bárbaros aos gregos; entre os bárbaros, os cruéis habitantes da Cólquida aos efeminados da Assíria; entre os gregos, o fino espírito do habitante de Argos ao pesado Beócio (=ignorante) de Tebas.
25 MG: Aquiles é o mais forte, o mais rápido e o mais belo de todos os heróis homéricos. Personagem fundamental na guerra de Tróia, mata Heitor depois que este matara seu amigo Pátroclo, e é posteriormente morto por Páris.
26 MG: Medéia é a famosa feiticeira que se apaixona por Jason e o ajuda a buscar o velocino de ouro. Em Corinto, Jason abandona Medéia por causa da filha de Creonte, Creusa. Em vingança, Medéia mata Creusa e Jason, bem como os dois filhos que ela própria tivera com Jason e foge para Atenas. Entre os clássicos, escreveram a respeito Eurípides, Ênio, Ácio, Ovídio e Sêneca.
27 MG: Ino enlouquece e abandona o marido Atamas, rei da Tessália. Mais tarde, quando já havia casado de novo, Atamas reencontra Ino, mas não conta isto à sua nova mulher. Esta, fadadamente, acaba pedindo ajuda à desconhecida Ino para matar os filhos do primeiro casamento do marido, mas Ino troca as crianças e são mortas as da segunda mulher.
28 MG: Íxion engana seu sogro com um prometido dote de casamento, ao qual é hipocritamente convidado. Lá, Íxion o lança numa cova com fogo e o sogro é queimado vivo.
29 MG: Io é violentada por Zeus e depois transformada numa vaca por ele, que ficou com medo da esposa, Hera. Quando esta descobre os fatos, faz com que Io seja picada por um moscardo e, enlouquecida, erra através das terras, até ao Egito. Lá ela é retransformada por Zeus em mulher.
30 MG: Orestes é filho do rei de Micenas, Agamenon. Quando Agamenon volta da guerra de Tróia é assassinado por sua esposa e pelo amante. Orestes vinga o pai matando a mãe. Por causa disso é condenado à loucura pelas Eríneas.
31 Entende-se, aqui, um dos episódios (ou capítulos) da Ilíada, de Homero, que se estrutura em XXIV cantos. É a epopéia da guerra de Tróia (Ilios, i).
32 O Ciclo Épico diz respeito aos escritores que queriam completar os relatos daIlíada e da Odisséia. Há registro de muitas dessas epopéias. E desde Aristóteles até Horácio, escritor cíclico possuía uma conotação pejorativa.
33 Atente-se para o uso pretensioso da primeira pessoa e para a vastidão do assunto proposto no início de desta epopéia cíclica. MG: Príamo é o último rei de Tróia. É pai de Heitor, Páris, Deifobos, Helenos e Cassandra. Depois de ter todos seus filhos homens mortos na guerra, para recuperar o corpo de Heitor, morto por Aquiles e ainda em poder deste, Príamo vai para o campo dos gregos e pede a Aquiles o corpo do filho. Aquiles fica muito impressionado com a atitude de Príamo e entrega-lhe o morto.
34 Alusão a uma fábula de Esopo, na qual uma montanha, após terríveis dores de parto, pare um ratinho.
35 Horácio reproduz em dois versos os três versos iniciais da Odisséia, de Homero, a epopéia que narra a volta de Ulisses (Odisseus) da guerra de Tróia para casa e para Penélope.
36 MG: Antífates é rei dos Lestrigões, povo antropófago e de grande estatura. Canto X da Odisséia, v.100ss.
37 MG: Cila é um monstro marinho de doze pés, seis cabeças e que habita uma gruta abissal numa rocha, e Caribdis, outro monstro marinho, Canto XII daOdisséia, v.85ss.
38 MG: O ciclope é Polifemo, gigante de um olho só, a quem Odisseu astutamente engana para fugir da morte. Canto IX da Odisséia, v.187ss.
39 MG: Meleagro é filho de Oineus e Altaia. Depois da morte de Meleagro e de Altaia, Oineus casa-se novamente. Desse casamento nasce Tideu, pai de Diomedes. A volta de Diomedes é ou aquela à sua pátria Etólia depois da conquista de Tebas, ou a viagem de volta depois da queda de Tróia. Tal epopéia principiaria por um parentesco afastado de Diomedes.
40 MG: Leda, esposa de Tíndaro, é amada por Zeus transformado num cisne. Dessa união surgem dois ovos com dois gêmeos: Pólux e Helena (cujo rapto por Páris foi a causa da guerra de Tróia), e Castor e Clitmenestra. O segundo ovo também é atribuído à união de Leda com seu marido. Em suma, a epopéia começaria pelos pais de Helena.
41 No teatro antigo, a cortina do palco descia no início do espetáculo. Ao final, um colaborador convidava o público a aplaudir.
42 Campus Martius (Campo de Marte), lugar de exercícios da juventude, de treinamentos militares, de comícios.
43 Cf. nota 21.
44 MG: Procne é casada com Tereu, que violenta a cunhada, Filomena, e lhe arranca a língua. Filomena faz sua irmã saber do acontecido. Procne então mata o filho em vingança da infidelidade do marido. E é transformada em rouxinol.
45 MG: Cadmo, fundador de Tebas, e sua esposa Harmonia são transformados em dragões, ou serpentes.
46 MR: O Gênio era uma espécie de divindade protetora de cada indivíduo, acompanhando-o do berço à morte. Honrá-lo significava entregar-se à alegria e ao prazer. E só devia ser aplacado com libações noturnas. Tais libações, se diurnas, constituíam sacrilégio. A expressão “aplacar o gênio” procede daí.
47 A lira, entre os gregos, servia, como a flauta, para acompanhar o coro, e possuía, primitivamente, quatro cordas. Passou a ter sete cordas, no século VII a.C., com Terpandro, depois, dez, onze ou doze, no século IV a.C., com Timóteo, e mais tarde chegando a apresentar dezoito cordas.
48 Delfo, local no monte Parnaso, no centro da Grécia, onde se encontravam os mais respeitáveis oráculos da antigüidade. As consultas eram feitas a Pítia, a sacerdotisa de Apolo, e suas respostas eram interpretadas pelo profeta.
49 A palavra tragédia deriva provavelmente de , bode. significaria o canto do bode (, canto). Parece que o prêmio de um concurso não teria sido, via de regra, um bode. Mas a pele de bode vestida pelos sátiros do drama primitivo lhes dera o nome de o. Parece que em suas origens a tragédia começava pelo sacrifício de um bode a Dionísio. A referência que Horácio faz aqui aparenta uma busca da etimologia de tragoedia.
50 A tragédia e o drama satírico devem ter se desenvolvido a partir de uma origem comum. Mas o primeiro que compôs dramas satíricos, diferenciados da tragédia séria, foi Pratinas de Flionte, em fins do século VI a.C.
51 Os sátiros apareciam em cena nus, cobertos apenas com uma pele de bode presa nos flancos. MR: são divindades secundárias, companheiros de Baco, representados geralmente com cabelos desgrenhados, orelhas pontudas, dois pequenos cornos e pernas de bode, tendo nas mãos uma taça, um bastão, ou um instrumento de música. (Cf. nota 56).
52 Alusão às comédias latinas conhecidas como tabernariae, uma variedade detogatae (cf. nota 63), com personagens de condição inferior.
53 Davo é o nome de um escravo em uma comédia de Menandro e outra de Terêncio.
54 Pítias é o nome de uma escrava na comédia Eunucos, de Terêncio, e noutra de Cecílio, na qual rouba seu patrão, o velho Simão, para fazer o dote de sua filha. Simão é também o nome de um senhor em uma comédia de Plauto.
55 MR: Sileno é uma divindade que habitava os montes e as florestas, representado como um velho a quem as ninfas encarregaram de criar Baco.
56 Faunos são semideuses campestres, caprípedes, cornudos e peludos, libidinosos. Muitas vezes são sinônimo de sátiros (cf. nota 51).
57 A plebe romana, parece, comprava e consumia nas ruas nozes (castanea nux) e grão-de-bico (cicer). “Comprador de noz e de grão-de-bico assado” é, aqui, metonímia de povo, vulgo.
58 Na terminologia antiga, grega, um metro equivale a dois pés. Daí, um verso com seis pés ser um trímetro jâmbico.
59 Ácio (ca.170-85 a.C.) ao lado de Pacúvio (ca. 220-130 a.C.) são os dois mais importantes poetas trágicos entre os romanos. Restaram-nos de seus escritos apenas alguns fragmentos.
60 Téspis, (séc. VI a.C. ?) originário da Ática, foi o primeiro poeta e ator trágico. Desenvolveu a tragédia a partir do canto do coro. Horácio acreditava, opinião hoje não mais compartilhada, que Téspis tivesse representado suas peças sobre uma carroça, antes de ir para Atenas. Também fora-lhe atribuída a criação da máscara, que na verdade é muito anterior.
61 Camena é o nome latino de Musa, significando às vezes, em Horácio, canto, poema.
62 O coturno pussuía uma espessa sola de madeira, para que os personagens trágicos ficassem maiores.
63 As praetextae eram as tragédias com tema nacional (domesticae), nas quais os personagens usavam a praetexta, veste dos altos magistrados nas cerimônias públicas. As tragédias com tema grego se chamavam crepidatae. As togataeeram as comédias com tema nacional, nas quais os personagens usavam atoga, veste própria dos cidadãos romanos. As comédias com tema grego se chamavam palliatae.
64 A gens Calpurnia, à qual pertenciam os Pisões, pretendia descender de Calpus, um dos quatro filhos de Numa Pompilius, lendário segundo rei de Roma, de 715-673a.C.
65 Demócrito de Abdera (ca. 460-370 a.C.), filósofo grego, desenvolveu a teoria dos átomos, adotada mais tarde por Epicuro. É sua também a teoria de que uma grande poesia depende da inspiração divina: “Tudo o que um poeta escreve com entusiasmo e sopro sagrado é, sem dúvida, belo.” (Fragm. 18) Demócrito, segundo Cícero, nega que alguém possa ser um grande poeta sem ser louco:Negat sine furore Democritus quemquam poetam magnum esse posse. (De Divin. I,80)
66 Segundo Hesíodo (ca. 700 a.C.), poeta grego, Helicão é um monte, perto de Tebas, no qual residiam as Musas.
67 Provavelmente um barbeiro conhecido na época, ou, segundo os escoliastas, um barbeiro, liberto, que, por causa de seu ódio a Pompeu, teria sido nomeado senador por César.
68 Havia, na Grécia, três cidades com o nome de Antícira, famosas pela produção de heléboro, uma erva medicinal, analgésica, que se julgava eficaz no tratamento da loucura. Aqui, Horácio utiliza-se de uma sinédoque.
69 A loucura era atribuída à ação da bílis, da qual Horácio se purga, provavelmente pela ingestão do heléboro, arriscando-se a não mais achar inspiração.
70 O verso 311 assim como os versos 40 e 41 refletem o preceito de Catão: rem tene, verba sequentur (conheça o assunto, que as palavras o seguirão).
71 O asse era uma antiga moeda romana de cobre, dividida em doze onças, isto é, valia doze onças. Um quincunx (quincunce) valia cinco onças (5/12 asse). As outras frações são o semis (1/2 asse, 6 onças), o deunx (11/12 asse, 11 onças), o dextans (10/12 asse, 10 onças), o dodrans (9/12 ou ¾ asse, 9 onças), o bes(8/12 ou 2/3 asse, 8 onças), o septunx (7/12 asse, 7 onças), o triens (3/12 asse, 4 onças), o quadrans (4/12 asse, 3 onças), o sextans (2/12 asse, 2 onças).
72 Os livreiros romanos, para preservarem os rolos de papiro da deterioração, esfregavam-lhes óleo de cedro e os guardavam em caixas de cipreste.
73 MG: Lamia, representada com um corpo de mulher e pés de asno, era uma personagem vampiresca, que devorava criancinhas.
74 Conforme a Constituição de Servius Tullius, são classificados nas centúrias dos anciãos todos os homens com mais de 45 anos de idade.
75 Ramnes é o nome de uma das três tribos primitivas do povo romano. Refere-se, aqui, às centúrias primitivas de cavaleiros, organizadas por Rômulo, sendo metáfora de jovens cavaleiros, juventude elegante.
76 Livreiros.
77 Quérilo de Iasos (ca. 330 a.C.), grego, é o símbolo do mau poeta, o equivalente à outra face de Homero, isto é, um raramente erra, outro, acerta.
78 M. Valerius Messala Corvinus (ca. 64 a.C. a 8 d.C.) foi o último dos grandes oradores romanos. Amigo de Horácio.
79 Aulus Cascelius foi famoso como jurisconsulto na época de Cícero.
80 Columnae designa os pilares onde os livreiros afixavam os nomes dos livros e onde talvez colocavam os livros à mostra.
81 O mel da Sardenha era amargo, segundo Virgílio, e, assim como tudo que provinha desta ilha, tinha má reputação. Plínio conta que eram servidas, como sobremesa, sementes de papoula assadas com mel.
82 Os habitantes de Roma eram ou nascidos livres (ingenui), ou libertos (libertini), ou escravos (servi).
83 O recenseamento por uma soma de sestércios (400 000 sestércios) dava direito à classe dos cavaleiros, inicialmente de caráter apenas militar, mais tarde compreende os cidadãos ricos e influentes.
84 MR: Minerva é a deusa protetora dos artesãos e artistas. Expressão proverbial comentada por Cícero, invita Minerva est como id est adversante et repugnante natura, ou seja, o que é contrário a e incompatível com a natureza.
85 Spurius Maecius Tarpa era já célebre como crítico na época de Cícero.
86 MG: Orfeu é o famoso aedo da era pré-homérica, filho de Éagro, rei da Trácia, e da musa Calíope, segundo outros, de Apolo e Clio. Cantava e tocava a lira com tal perfeição, que até as feras se aquietavam e vinham deitar-se a seus pés. Tendo Eurídice, sua mulher, morrido da picada de uma serpente no dia do seu casamento, quando fugia ao assédio de Aristeu, desceu Orfeu ao inferno para buscá-la e conseguiu, com seu canto mavioso e o som da lira, que as divindades infernais lhe permitissem levá-la, sob a condição de não olhar para trás enquanto não transpusesse os limites do inferno. Não resistindo à sua impaciência, voltou-se para ver se Eurídice o seguia, e nesse mesmo instante ela desapareceu. Foi então fulminado por Zeus ou, segundo outra lenda, despedaçado pelas bacantes, ou ainda, passou o resto da vida inconsolado e triste. Atribuía-se-lhe a invenção da lira e dos rituais mágicos e divinatórios, origem de seitas místicas, a que se deu o nome de orfismo. Também teria contribuído com sua arte para civilizar os homens primitivos.
87 De acordo com a tradição grega, os primeiros homens se alimentavam de algumas árvores e de carne crua. Os antropófagos, pela tradição literária depois de Homero, eram relegados da humanidade para os monstros.
88 MG: Anfíon é filho de Zeus e Antíope, esposo de Níobe, poeta e músico que, segundo a lenda, teria construído os muros de Tebas. Ao som de sua lira, as próprias pedras vinham colocar-se no lugar devido. A lenda de Anfíon tornou-se um símbolo da fundação de Tebas, considerada a mais antiga cidade da Grécia.
89 As mais antigas leis foram gravadas em madeira e não em bronze. Assim, em Atenas, as leis de Sólon foram gravadas em tábuas de madeira de carvalho, conforme uso antigo.
90 Plutarco, em Vidas Paralelas, escrevendo sobre Alexandre, afirma que este “considerava a Ilíada um viático para o valor guerreiro e assim a chamava; levava sempre consigo a edição que Aristóteles preparara desse poema, a chamada “edição do estojo”, mantendo-a sob o travesseiro, ao lado da espada, segundo conta Onesícrito”. (São Paulo: Ed. Paumape, 1992:140. Trad. do grego por Gilson César Cardoso). Tirteu (ca. séc. VII a.C.), poeta originário de Atenas, compunha elegias de caráter exortativo e guerreiro e conteúdo político, com as quais incitava os espartanos à guerra. Os versos de Horácio, na segunda Ode do terceiro livro,Dulce et decorum est pro patria mori (É doce e belo morrer pela pátria) são inspirados em Tirteu (Schön ist der Tod, wenn man fällt in der vordersten Reihe der Krieger,/ als ein tüchtiger Mann, der um sein Vaterland kämpft - Bela é a morte, quando se tomba na primeira fila de guerreiros,/ qual homem capaz de lutar por sua pátria. Tradução portuguesa minha da tradução alemã de H. Fränkel.).
91 Alusão aos poemas gnômicos (sentenciosos, de máximas), (Sólon, Teognis, Foclide, etc).
92 MG: Piério é relativo ao monte Píero, na Tessália, habitação das Musas. Também é o nome dado às filhas de Píero, rei da Emácia, que disputaram com as Musas o prêmio de canto e poesia. Alusão também aos poetas Píndaro, Simônide, Baquílide, que tiveram o favor de Hieron, tirano de Siracusa, de Theron.
93 MG: Musa é cada uma das nove deusas, filhas de Mnemosine e de Zeus, as quais presidiam as artes liberais. A Musa da música é Euterpe. As outras são: Clio (história), Talia (comédia), Melpômene (tragédia), Terpsícore (dança), Erato (elegia), Polínia (poesia lírica), Urânia (astronomia), Calíope (eloqüência).
94 MG: Apolo é deus grego da luz, das artes e da adivinhação. Era amigo das Musas.
95 A abstinência de sexo e álcool era imposta aos atletas.
96 Os jogos píticos aconteciam a cada 4 anos no Vale de Delfos, e celebravam a vitória de Apolo contra a serpente Píton. Horácio, depois de ter mencionado o concurso de ginástica, representado pela corrida, fala do concurso de música, dois elementos culturais da educação grega.
97 Alusão a uma brincadeira infantil, provavelmente, de corrida, na qual o último do grupo é penalizado. O que dirigia a brincadeira dizia: “Habeat scabies, quisquis ad me uenerit nouissimus” (Que tenha sarna aquele que chegar por último). Parece que, aqui, Horácio insinua as infantilidades de tais impertinências, quando muitos compõem como crianças. Não fosse tão marcada temporal e ideologicamente a expressão, poderíamos traduzir como “O último é a mulher do padre!”
98 A carpidura é de origem oriental, e foram talvez os etruscos que a introduziram em Roma.
99 Aparências enganosas.
100 Quintilius Varus, (morto em 23 a.C.), poeta e crítico, foi amigo de Horácio e de Virgílio, com quem freqüentou a escola. Numa Ode (I, 24) de Horácio, Virgílio lamenta a morte do amigo.
101 Cálamo era um pedaço de cana ou caniço talhado em ponta, apincelada ou rachada, outrora usado, de forma oblíqua, como instrumento de escrita em papiro, pergaminho, etc.
102 Aristarco de Samotrácia (ca. 216-144 a.C.), um dos fundadores da crítica homérica, gramático da escola de Alexandria. Seu nome designa um crítico de bom gosto e sincero.
103 Estereótipo do poeta louco.
104 Icterícia, ou hepatite.
105 Delírio fanático diz respeito à introdução em Roma do culto a uma deusa da Capadócia, no qual os sacerdotes e sacerdotisas (fanatici, de fanum, templo), em dias de festa, realizavam danças orgiásticas e auto-flagelação até um delírio extasiado, durante o qual faziam profecias.
106 MR: Diana é a deusa da caça, filha de Júpiter e de Latona. Obteve de seu pai a permissão de jamais se casar, e Júpiter deu-lhe flechas e um cortejo de ninfas, tornando-a rainha das matas. Surpreendida no banho por Actéon, transformou-o em veado e fez com que seus cães o devorassem. Amou o pastor Endimião.Iracunda Diana parece tomá-la como a deusa da lua que dá a loucura.
107 Empédocles de Agrigento (ca. 500-430 a.C.), poeta e filósofo, autor de um grande poema sobre a natureza e de cantos de purificação de caráter místico. Criador da clássica doutrina dos quatro elementos, na qual as coisas se originam da mistura de fogo, ar, água e terra. Schäfer reconhece na estilização de HorácioEmpedocles, ardentem frigidus Aetnam (substantivo-adjetivo/adjetivo-substantivo) a representação de tal doutrina. Para Empédocles, a velhice e a morte são produzidas pela diminuição do elemento ígneo, o que permite a outros verem aqui uma simples ironia horaciana numa antítese agradável (frio/ardente), ou ainda, porque Empédocles dizia que o sangue gelado em volta do coração era sinal de estupidez, vê-se, então, uma dissimulação por trás de um jogo de palavras, onde frigidus tomaria o lugar de stupidus. Horácio refere-se à mais conhecida das lendas que existiam sobre a morte do filósofo.
108 Bidental é o lugar onde caiu um raio e, conforme os costumes etruscos, tido como sagrado, sendo purificado com o sacrifício de uma ovelha de dois anos (bidens). O sacrílego, acreditava-se, era castigado sobretudo com a loucura.
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