sexta-feira, outubro 03, 2025

Três poemas de Hideide Torres



Acróstico

Mais uma coisa havia a fazer
Uma coisa que faria a criação completa
Lindamente arranjada e em plenitude
Haja a mulher, disse Deus com suas mãos habilidosas,
Enquanto moldava um novo ser de uma mesma carne
Raiou o sexto dia; eis que tudo era muito bom!

 

O furto


De mim podem ter furtado um objeto, mas deles roubaram a esperança.

Um coração roubado de esperança não sonha...

Objetos se recuperam; é difícil tirar segunda via de esperança.

É duro olhar nos olhos de uma mãe e ver vergonha,

Um sentimento de que falhou – quando falharam com ela

O mundo, o sistema, a vida, o companheiro que nada deixou

Senão suas marcas de egoísmo e ganância.

 

De mim podem ter furtado um objeto, mas deles roubaram os sonhos

E é por isso que eles pegam o que não lhes pertence

Porque o que era seu não está mais lá – a credulidade no mundo.

Cabeça de gente grande em corpo de gente pequena – paradoxo insuperável.

Nunca dá certo... gente pequena deve ser o mundo grande, como um parque de diversões,

Uma grande aventura...

Mas olhos de gente grande em gente pequena só vê o errado – e aprende o mal.

 

De mim podem ter furtado um objeto, mas deles roubaram a inocência.

E eu senti vergonha no alto de meus saltos, eles de pé no chão

Tendo de ouvir sermão em vez de contos de fadas...

Uma vez só eu queria este mundo possível aqui e agora...

Neste mundo que não quer Deus, mas não tem nada melhor para dar.

Que é arrogante e autossuficiente, mas não tem nada melhor para dar.

Que se acha tudo e não é nada, que não sabe dar, só cobrar...

 

De mim podem ter furtado um objeto, mas meu medo incerto

É que deles um dia vão roubar a existência

E vão dizer que eles mereceram, que são maus...

Mas a verdade nua e crua é esta:

De mim roubaram um objeto, deles roubaram a infância.

E há coisas que a gente dificilmente recupera.

 

 

No princípio era o verbo


No princípio era o verbo:
a fala que gera a vida,
a voz que se faz ouvir
o som que permanece no ar.

No princípio era o verbo
e por isso nenhuma palavra emitida
podia voltar para ele vazia:
tinha de adjetivar-se
de substantivar-se
de pronominar-se
e predicar-se.

No princípio era o verbo
em busca de um sujeito
atrás de um complemento
apaixonado pelo adjunto adnominal
somente pela possibilidade do estar junto...

No princípio era o verbo
sem pleonasmo nem hipérbole.

Mas fomos colocando tanta coisa sobre o verbo,
conjecturando acerca do verbo
que ele ficou tão envolvido em palavras
e as frases nossas ficaram sem ação...

Frases sem verbo
Vidas sem verbo
Linguagem de pastiche
Corpo sem coração

E por isso às vezes falamos
e não temos mais voz
porque não temos mais verbo.

Talvez seja hora de repensar o discurso.
Melhor ainda: talvez seja hora de calar.
Deixe que o Verbo fale.
Porque no princípio, sem homilia nem exegese
Sem hermenêutica nem linha teológica
O verbo era Deus.



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