sexta-feira, dezembro 23, 2011

Saudade e Esperança: as “marias das dores”




Rubem Amorese 
Que formosos são sobre os montes os pés do que anuncia as boas-novas, que faz ouvir a paz, que anuncia coisas boas, que faz ouvir a salvação, que diz a Sião: O teu Deus reina! Eis o grito dos teus atalaias! Eles erguem a voz, juntamente exultam; porque com seus próprios olhos distintamente vêem o retorno do SENHOR a Sião. Rompei em júbilo, exultai à uma, ó ruínas de Jerusalém; porque o SENHOR consolou o seu povo, remiu a Jerusalém. O SENHOR desnudou o seu santo braço à vista de todas as nações; e todos os confins da terra verão a salvação do nosso Deus —Isaías 52:7-9.
Meditar sobre a esperança do Advento requer pensar sobre passado, presente e futuro: sobre como, no presente, nos relacionamos com o passado e com o futuro. Para entender esses olhares, basta perguntar: advento de quê? — advento de Jesus, do cumprimento das promessas, realização da esperança, do consolo de Israel.
Por que “consolo”? Por causa das dores de perdas de coisas ou pessoas queridas.

As “marias das dores”

O que é, o que é: duas “marias das dores”; duas “dores boas” e essenciais; duas mulheres amadas; uma idosa e outra jovem; são mãe e filha; são tão amadas quanto “das dores”; só são “das dores” porque são amadas.
Dores amadas? Quem ama a dor? Existe dor amável? Sim, tão dolorida será quanto mais amada for.
Adivinhou? Essas marias das dores se chamam Saudade (a mãe) e Esperança (a filha). Para falar da filha preciso falar da mãe.
A dor que elas trazem é a dor da ausência. A saudade traz a dor da ausência do bem-querer que já não é, porque se foi; aquilo que amávamos e que já não temos mais. Na esperança há a dor da ausência do bem-querer que ainda não é, porque se espera.
É interessante que gostemos delas, mesmo sendo “das dores”, porque só existem em função da ausência de algo querido; da dor de não ter mais ou de ainda não ter.  Nas palavras de Fernando Pessoa:
Eu amo tudo o que foi
Tudo o que já não é
A dor que já não me dói
A antiga e errônea fé
O ontem que a dor deixou
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.
Saudade e esperança só existem porque “precisamos” lembrar e esperar; são dores essenciais porque não há ser normal que não goste dessas marias, e que não sinta suas dores. Cecília Meireles fala sobre esse sentimento (grifos meus):
De que são feitos os dias?
De pequenos desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças.
Entre mágoas sombrias,
momentâneos lampejos:
vagas felicidades,
inatuais esperanças.
Repara as tônicas: saudades, lembranças, felicidades, esperanças. Se pudéssemos mandar embora a saudade, por meio do esquecimento, ficaríamos sem o bem-querer que ela traz; se me livro da esperança, por meio da desistência, resta-me o amargo do absinto na boca. Quando Jeremias fala da morte da esperança ele diz assim:
“Fartou-me de amarguras, saciou-me de absinto” – Lm 3:15.

Elas se confundem — e nos confundem

Muitas vezes chamamos a esperança de saudade, e Jó também:
Porque eu sei que o meu Redentor vive e por fim se levantará sobre a terra. Depois, revestido este meu corpo da minha pele, em minha carne verei a Deus. Vê-lo-ei por mim mesmo, os meus olhos o verão, e não outros; de saudade me desfalece o coração dentro de mim – Jó 19:25-27.
Fiz uma música, num dia de nostalgia, que batizei de Saudade de Casa. Está lá no site da IPP. Um instrumental, pois nunca consegui verbalizar esse sentimento. Eu queria falar da saudade de uma casa em que nunca estive; talvez, saudade do céu: um bem-querer realizado no futuro, ao qual me apego com… saudade (que também é esperança).
É por isso que estamos falando de mãe e filha, a diferença está no tempo: é uma ausência no passado (saudade) ou no futuro (esperança).
E como doem, essas duas marias! Mas gostamos, de certo modo; como as dores do bem-querer do passado, que chamamos de saudade. Como diria Pablo Neruda:
Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas o amado já…
Saudade é amar um passado que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,
é não ver o futuro que nos convida…
De fato, talvez não queiramos nos livrar dessas dores porque, “ruim com elas, pior sem elas”. De volta ao Pablo Neruda:
E esse é o maior dos sofrimentos:
não ter por quem sentir saudades,
Ou então, nas palavras de Florbela Espanca:
…Não sinto saudades do seu amor, ele nunca existiu, nem sei que cara ele teria, nem sei que cheiro ele teria.
Não existiu morte para o que nunca nasceu…
Sim, não há saudade de algo que não foi, um dia, bem-querer.

Advento: o noivo presente

No Advento, iniciou-se a consumação da saudade e da esperança. Não se tem saudade nem esperança do que está presente. E “já não havia choro”, diz o Apocalipse, porque as lágrimas da ausência haviam sido enxugadas. Pela fé tudo se faz presente; passado e futuro; tudo é “plenitude dos tempos”. A fé nos dá acesso imediato ao que se espera e ao que se não vê (Hb 11:1), às ausências passadas, presentes e futuras.
E temos convicção dessas coisas, como se as víssemos  (veja em nosso texto de Isaías: “porque com seus próprios olhos distintamente vêem o retorno do Senhor”); como se estivessem presentes; e nessa convicção, nessa certeza, há consolo real, pois o que já não era e o que ainda não era tornam-se presentes.
É por isso que o Advento “consuma” tanto a saudade quanto a esperança. Lembremo-nos do velho Simeão, ao pegar o menino no colo:
Agora, Senhor, podes despedir em paz o teu servo, segundo a tua palavra; porque os meus olhos já viram a tua salvação” (Lc 2:29,30).
Quando os nossos olhos enxergam, naquele menino, a “tua salvação”, a saudade se vai e a esperança é consumada.

Consolação: não chores mais, Maria

Pela fé não precisamos mais esquecer das saudades ou desistir da esperança. Pela fé nós fazemos uma viagem “google earth” até aquele presépio, e vemos ali nossa consolação. É assim que entramos no descanso de Deus. E vivenciamos, pela fé, em nossa vida de dores de “ausências”, (que Paulo chama de “momentâneas tribulações”), a alegria da “presença plena”.
Nesse momento, as lágrimas já não fazem sentido, pois agora “o noivo está presente”. O bem-querer que se foi e o bem-querer que esperamos se fazem presentes e isso se torna motivo de festa: a esperança do grande banquete messiânico.
Assim, pela fé, nos alegramos, hoje, com um dia em que diremos em nossos corações: eis que tudo é muito bom. E será o sétimo dia. E descansaremos. Para sempre.
Jesus proveu os símbolos pelos quais celebraríamos a saudade e a esperança. Ao tomar a Ceia, fazemos uma espécie de “hora da saudade”, até que ele volte. E Jesus nos diz: “façam isso em memória de mim”. Tradução: “não se esqueçam de mim e não desistam de me esperar”. E nós, ao celebrarmos essa saudade, esse bem-querer perdido, enchemos nossas lâmpadas de óleo, para que não se apaguem antes da vinda do Noivo.
Hora da saudade e hora da esperança, pois afirmamos que ele voltará. Então seremos consolados, definitivamente, da dor que sua ausência nos causa. E das dores de tantas outras ausências queridas em nossas vidas.

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