“Somos Cem!”
Em Roma – lupanar dos Césares corrutos –
Ao contraste infeliz de orgias e de lutos,
Um louco imperador, já bêbado do sangue
De tanta execução de um povo pobre e exangue,
Quis mais, pois exigiu que a si todo o cristão,
Em público, ofertasse, incenso e adoração.
Por isso fez erguer, em meio à velha praça,
De si mesmo uma estátua, em gesto de ameaça.
Mesmo tendo razão para a revolta, o povo
Evitava falar desse decreto novo,
Pois a crítica dele, ou simples comentário
De tal caso, seria um juízo temerário...
Mas, no dia marcado e na hora aprazada,
Estava a multidão mudamente postada
Na grande e velha praça, aguardando o início
Da cerimônia vil desse pagão ofício.
A espera foi bem longa e foi grande o cansaço;
Porém, de seu lugar, ninguém movia um passo.
Cada qual, ao chegar diante do ídolo imenso,
Curvava-se submisso e, então, queimava incenso...
O comando da escolta, ativo e ameaçador,
Fiscalizava tudo e a todos com rigor.
Ninguém dizia nada; até que, a certa altura
Daquela cena hostil, uma hercúlea figura
De jovem recusou curvar-se à estátua erguida,
Dizendo à autoridade: - “É-me preciosa a vida,
Mas prefiro perdê-la, a cometer traição!
Somente a Deus adoro e atendo; eu sou cristão!”
Ante àquela atitude, o comando da escolta
Em suspense ficou; para o moço se volta
E lhe fala severo: - “O seu gesto impensado
Há de à morte o levar sob o lago gelado...”
A turba amedrontada escutou, sem protesto,
A sentença ditada ao jovem, por seu gesto...
Entanto, quando tudo acreditar fazia
Que outros iam ceder à ação da covardia,
Muitos, que até ali em silêncio ficaram,
A mesma negativa, altivos, proclamaram:
- “Não! Não somos tão vis, temos limpas as mãos;
Só cultuamos um, que é Deus! Somos cristãos!”
E esses, como os demais, que dessa forma agiam
Em número e valor se elevavam, cresciam;
Até que, ao desfilar do último refém,
A soma dos fiéis totalizava cem.
Mas antes de cumprir a sentença, por norma,
O comando da escolta os colocou em forma;
E apelou a cada um que à fé apostatasse,
E a clemência da lei, desse modo, alcançasse.
Porém, todos de pé, em firme posição,
Unânimes, febris, lhe responderam: - “Não!
Não negaremos nunca o Salvador e Mestre!
Poderão nos matar o corpo corruptível,
Mas nossa alma – jamais! – que é eterna e intangível.”
Face a tal decisão leal e destemida,
A sentença de morte iria ser cumprida.
O comando da escolta, os fez logo marchar
Para o lago gelado.
Era tarde; o luar,
Balsâmico e suave, ungindo os condenados,
Esboçava no céu um quadro original:
Uma cruz sepultando um fardo de cuidados;
E, nos braços da cruz, o facho de um fanal...
Aquele quadro lindo a refletir-lhes n’alma
Uma coragem santa e uma celeste calma,
Inspirou-lhes, na marcha, o cântico de um hino
Que consagrava a Deus seu heroico destino:
“Somos cem, a morrer por Cristo!
Somos cem, a morrer por Cristo!
Mas no céu nós o veremos
E com os anjos cantaremos:
- Vale a pena morrer por Cristo!”
A praia era deserta; o frio era cortante;
Do lago a superfície era vasta e brilhante;
Porém um sorvedouro havia a cada passo,
Disfarçado e fatal.
Mas, nem fome ou cansaço
Abatia a moral daquela gente forte
Que a sorrir e a cantar, enfrentaria a morte
Nessas águas glaciais...
O comando da escolta
Olhava-os com respeito.
Então, um deles volta,
Causando à autoridade imensa decepção,
Pois via em cada qual um bravo em ascensão.
Ele era moço ainda; e mostrava em seu rosto
A palidez do medo e as marcas do desgosto...
É que na hora final sentiu a alma abatida
Ao choque emocional de desistir da vida:
- Por quê? Por quê morrer quando, em festa, a cidade
Era doce convite à sua mocidade?!...
Por quê sacrificar-se anônimo, sem glória,
Se poderia obter, de outro modo, a vitória?...
Preservando a existência, ele não deixaria
De manter-se cristão; apenas tomaria
Cautela no falar, cuidando na conversa,
Para evitar o mal dessa gente perversa.
Quem sabe se melhor pregaria o Evangelho
Num estranho lugar, quando fosse mais velho?...
Mas... e o seu voto a Deus junto aos seus companheiros?
Que pensariam dele?...
E, com passos ligeiros,
Sem olhar para trás, à deserção se entrega...
Quando o grupo notou a fuga do colega,
Em vez de se deixar vencer pela tristeza,
Ergueu mais alto o olhar, marchou com mais destreza,
E todos, a uma voz, cheios de inspiração,
Foram cantando assim sua heroica canção:
“Somos firmes noventa e nove,
A seguir a morrer por Cristo!
Mas, no Céu nós o veremos
E com os anjos cantaremos!
- Vale a pena morrer por Cristo!”
O comando da escolta olhou emocionado
A dramática cena; ele via, de um lado,
O medo, a retirada, o louco apego à vida,
Em detrimento até da atitude assumida...
E, do outro, ele notava a firmeza, a bravura,
A excelência da fé na existência futura,
A esperança num Deus que o mortal persuade
A confiar na promessa azul da eternidade...
E assim, profundamente abalado e convicto
Da sua própria culpa e do amor infinito
De um ser eterno e justo; e, maldizendo a dor
Que àqueles bons heróis causara um desertor,
A espada, o escudo e a farda à distância lançou;
Correu a unir-se ao grupo; e, impávido, exclamou:
- “Amigos, eis-me aqui! Deixai a vós unir-me!
Por favor, permiti que eu vá convosco, firme!
Agora eu creio em Cristo! Eu sou cristão também!
Somos de novo cem! Somos de novo cem!...”
E nas águas glaciais, sob as bênçãos do luar,
Vão todos submergindo, a cantar, a cantar:
“Somos cem, a morrer por Cristo!
Somos cem, a morrer por Cristo!
Mas, no Céu nós o veremos
E com os anjos cantaremos:
Vale a pena morrer por Cristo!”
Agosto de 1959